A anti-rosa atômica, sem rosa sem nada

Vivemos um período anormal da história. Não, não é a peste à que me refiro. Isso pode até ser novo pra gente, mas uma visão um tantinho mais macro dos 300 mil anos da espécie logo esclarece que a fome, a guerra e a peste é que são de fato as narradoras da História. O que estou a apontar aqui é que me parece que o Brasil, outrora reserva dos sujeitos mais brilhantes, sensíveis e de coração mais nobre do ocidente, hoje parece sofrer de uma escassez desses mesmos. Na verdade não há razão para eu poupar adjetivos, carece de prodígios, pessoas extraordinárias, virtuoses rebeldes ou qualquer coisa do gênero. Se assim não o for, se a pós-modernidade não pervertera o coração dos recém chegados, então por favor eu suplico, alguém fure meu olho com a poesia de um Drummond low profile ou com uma crônica furtiva de uma Clarice do agreste. Se em você houver sinceridade haverá de convir com o meu pessimismo porque tu mesmo, em seu íntimo, já terá falado qualquer coisa parecida como quem resmunga de si para si. Andei ouvindo muito Secos e Molhados na última semana, eu sei que tem alguma coisa nesse álbum, algo que eu não conseguiria articular mesmo que passasse o resto da semana digladiando com meu vocabulário capenga — porque desse conflito, nada resultaria que superasse o trivial— . Me limito a dizer então que esse algo é transcendente, é belo, é algo que traz alguma consolação ao gosto pungente que o fim de ano deixa na boca.

Em junho de 1937, Pablo Picasso pinta o Guernica, obra que retrata a destruição da cidade homônima pelo bombardeio alemão durante a Guerra Espanhola. Se notares bem, todo o pitoresco do quadro repousa na destruição da paisagem que jaz desolada fundindo-se a estética cubista, sete sólidos metros de pura arte. Há um cavalo em disparate, um touro em pânico, cadáveres despedaçados no chão, uma mãe — aos prantos — ajoelha e lamenta aos céus erguendo o corpo do filho. Durante a exposição, em julho do mesmo ano, Pablo responde “Não, você que o fez” ao oficial alemão da SS, que o havia perguntado se ele era o autor do quadro. Em 1949, o sociólogo marxista Theodor Adorno postula que é impossível escrever poesia depois de Auschwitz, e que se assim não o fosse, seria então, imoral. Na década de 50 o carioca Vinícius de Moraes escreve sobre a Segunda Guerra no seu livro “Antologia Poética” e abre o poema Rosa de Hiroshima com versos que ecoariam pela eternidade: “Pense nas crianças mudas, telepáticas […], Pense nas feridas como rosas cálidas”. Ney Matogrosso, um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, gracioso feito uma cobra, em 1979 musicou e gravou o poema de Vinícius no que talvez seja a coisa mais bonita sobre guerra já feita em toda a história. Vinícius morre na banheira de sua casa em 1980. Aconteceu que Adorno estava dolorosamente enganado.

Apesar de derrapar nas Humanas com alguma frequência, meu daemon reside nas Ciências da Natureza — quem me conhece sabe — . Tenho pra mim que a Física é a ciência mais elegante que já deu o ar da graça no panteão do método. A Química é a linguagem fundamental da matéria e, portanto, do cosmos. E a Biologia… bem, a Biologia é imperatriz soberana. A derradeira verdade que aguarda por detrás do último véu, ela que é ao mesmo tempo lei, júri e carrasco da vida. Desse lado da toca do coelho é preciso correr o máximo possível, só para permanecermos no mesmo lugar. Se tu a expulsa pela porta, ela novamente entra planando graciosa pela janela. Contudo, tenho a impressão de que as pessoas não compartilham dessa visão romantizada de Naturezas, diga-se de passagem a maioria sente um arrepio elétrico — do tipo morder picolé com os dentes incisivos — correr pelo corpo só de ouvir falar movimento uniformemente variado ou leis de Mendel. No entanto, mesmo ciente disto, ainda quero realizar uma série confusa de pensamentos obcecados que ando tendo sobre reações nucleares e protocolos de extinção em massa, todavia, prometo forçar uma barra para que o monólogo não se estenda muito e nem fique absolutamente tedioso. Assim, dando fim a essa latomia enfadonha, o que se segue é a minha breve biografia da bomba de fusão termonuclear.

CAPÍTULO I - URÂNIO E ISÓTOPOS

Isótopos mais comuns do Urânio

Ok, ouvi por aí que você tá a fim de fazer um traque diferenciado pro São João do ano que vem né? Tranquilo, ninguém aqui vai te julgar. Então, partindo do pressuposto que você não tem lá essas intimidades com físico-química, eu vou adiantar o seu lado passando por cima de tudo quanto é detalhe importante, só vou abordar alguns conceitos centrais do processo para garantir que você não destrua o prédio de laboratórios da sua faculdade ou que todos os pelos do seu corpo caiam subitamente, ou pior, comece a crescer algo estranho— que assustadoramente se parece muito com um pavilhão auditivo— bem no meio das suas costas.

Então, se já estivermos prontos vocês podem abrir o livro de química no primeiro capítulo de atomística: Isótopos. Como bem sabem, tudo nesse mundão de meu Deus— inclusive vocês — não passa de um punhado de átomos em movimentação frenética na busca por estabilidade. Essas coisinhas inquietas ainda podem ser divididas em três outras coisinhas ainda menores chamadas partículas subatômicas: os prótons (+), nêutrons (0) e elétrons (-). Toda e qualquer substância possui um número específico e invariável de prótons no núcleo do seu átomo. Isso é o que faz dela ser aquilo que é. Nunca duas substâncias diferentes terão um número de prótons iguais, pois se assim o for, na verdade você está com dois átomos diferentes de uma mesma substância né gênio. É justo concluir então que o número de prótons é também a identidade dos elementos, e portanto, dos átomos. A isto chamamos Número Atômico (Z) — conhece as regras, se tá em negrito é porque é pra lembrar, vais precisar disto aqui em um minuto—, o problema é que o mundo real não é um livro didático e aqui fora os átomos não tem cores diferentes nem vem neles escrito com caligrafia celestial a inicial do elemento ao qual pertencem. Mas graças ao Z e a tabela periódica, quando você identifica o número atômico daquele átomo específico, é só procurar na tabela qual elemento é o dono daquele número, e assim tu descobre de qual material se trata.

Agora que você sabe o que é o Z fica mole de entender o que são isótopos. Isótopos não passam de átomos com mesmo número atômico — logo do mesmo elemento — mas com massas diferente, porque apesar de eles terem a mesma quantidade de prótons no seu núcleo, a quantidade de nêutrons é diferente. Segue o exemplo clássico: o Hidrogênio (H) possui um único próton, consequentemente sua massa é 1. Entretanto, o hidrogênio na natureza pode ainda ser encontrado em duas outras formas, ou seja, em dois outros isótopos: O Deutério, que é o H com um próton e um nêutron, ou seja com massa 2, e o Trítio, que é o H com um próton e dois nêutrons, por conseguinte, com massa 3— eu estou sendo repetitivo aqui mas estou tentando te pegar pela mão no limite da demência mesmo, eu vou lá saber sua bagagem de química, sei que fica meio chato de ler mas eu prefiro assim que é pra ficar tudo claro igual água — . Certo, fechemos os livros e voltemos para o real motivo pelo qual estamos aqui.

Pastilha de urânio altamente enriquecido (80–90%) com destino a indústria bélica.

Primeiro, vamos precisar de urânio, muito urânio mesmo. Urânio é uma pedrinha amarelo-esverdeada que emite radiação alfa e — desde que você não coma ou triture com um cartão e dê um teco— é relativamente inofensiva. Acho que não fui específico o suficiente na lista de materiais, minha culpa. Vamos precisar mais ou menos de uma tonelada de urânio. Onde você vai conseguir isso tem cara de problema seu, mas posso te dar uma dica de onde eu consegui o meu. Caetité — a própria, aqui do ladinho— é a maior produtora de urânio do Brasil. A maior parte é destinada para as usinas do Rio, mas não todo… E me parece um excelente negócio para o município, ser o maior explorador nacional do recurso radioativo mais valioso do planeta pela bagatela de ter seus recursos hídricos totalmente contaminados e ter que lidar com algumas pequenas consequências biológicas dos efeitos estocásticos da radiação ionizante — qualquer coisa como mutações causadas por radicais ionizantes atravessando gerações através da destruição do DNA e contaminação do leite materno — , nada aterrorizante e afinal, todo mundo sabe que pra fazer um grande omelete de fissão nuclear é preciso quebrar alguns ovos primeiro, Sigamos em frente.

Cilindros de enriquecimento de urânio em usina norte americana.

Agora que estamos com o urânio em mãos — metaforicamente é claro, queimaduras de radiação definitivamente não são nada bonitas de ver—, antes de começar a brincar de Heisenberg precisamos enriquecê-lo. Acontece que para fazer nossa pinhata para festa do apocalipse o que queremos é o isótopo 235 do urânio (U-235) e no mercadinho da mãe natureza só vende o dióxido de urânio (U + O2), que é majoritariamente o isótopo 238 (U-238), e a quantidade de U-235 que você consegue tirar do U-238 é apenas 0.7%. Resumindo a ópera a nossa tonelada de urânio acabou de virar 7 quilos… misericórdia essa vida é só tristeza e consternação. Felizmente, os soviéticos descobriram que você pode limpar o urânio, purificá-lo, triturá-lo e depois colocá-los nessas câmaras cilíndricas de diversão e água pressurizada. Lá dentro a pressão força a saída de 3 nêutrons do átomo de urânio ao mesmo tempo que mantêm o número de prótons, assim o isótopo que antes era U de massa 238 permanece U mas com massa 235. Obrigado comunistas vocês são massa. Agora temos essas belezinhas de bolachas redondas e inacreditavelmente densas de U-235 que acabaram de sair do forno antes mesmo que você pudesse dizer “holocausto nuclear”.

CAPÍTULO 2 - FISSÃO NUCLEAR E O ERRO DO HOMEM MAIS INTELIGENTE DA HISTÓRIA

Albert Einstein 1947

Bom, parece que já conseguimos o recheio tintilante da nossa trufa do armagedom, e sendo assim, só falta esclarecer como ela funciona. Para tal, precisaremos dar uma pincelada rápida em reações nucleares — livro de novo, capítulo 11, duas primeiras páginas —. Basicamente a fissão nuclear é uma reação em cadeia de quebra de núcleos atômicos grandes em átomos menores, ela ocorre com o U-235 e é a responsável pela emissão de energia na foram de calor e radiação gama. É assim que funcionam os reatores e usinas nucleares e também as bombas. Já a fusão nuclear é o processo inverso, uma reação em cadeia de união de núcleos de átomos menores gerando um átomo maior e liberando bem mais energia em seguida. É como funciona por exemplo o sol e também… bom, as bombas. No entanto, a forma como as duas cascatas são conduzidas caracterizam uma diferença importante entre elas que merece uma análise um pouco mais pormenorizada, porque será de grande importância daqui a pouco.

Em 1905, um descabelado judeu alemão iria firmar um postulado ousado que mudaria a forma como olhamos para os corpos. Einstein propôs a sua famosa Equivalência Massa-Energia, ou para os chegados E=mc²(onde E é energia, m a massa e c a velocidade da luz ao quadrado). O que isso significa? É tão simples que parece surrealismo. Toda massa é também energia e vice-versa. Imagine você, tem uma bola parada no meio do campo e essa bola tem uma massa, tudo têm. Para mover essa bola — isto é tirá-la da condição de inércia e dar-lhe velocidade >0 — você tem aplicar nela uma força e toda força é também, quantidade de energia. Vamos supor então que você se aplicou horrores no legpress e, com o sua coxa monstruosamente malhada, chuta a bola com uma força tão grande que a velocidade dela deveria superar a velocidade da luz. Apesar disso nada pode superar a velocidade da luz, é uma das regrinhas fundamentais do universo, então uma vez que a bola sai rasgando os ares luminosos e atinge 299 milhões de metros por segundo, toda energia adicional do chute que não virar velocidade na bola vai— pasme — se converter em massa… exatamente, a bola vai literalmente ficar maior. Absurdo, sim absolutamente absurdo, mas o universo tem dessas e ele funciona desse jeitinho que eu tô te explicando, você lide com isso como quiser. A verdade pode até te libertar mas só depois que ela acabar com você. A parte boa é que não existe matéria que se mova na velocidade da luz, então você não vai ver bolas de futebol virando esferas do dragão por aí. Entretanto, se você deslocar o pensamento de Einstein para uma escala microscópica ou melhor dizendo, atômica, vai descobrir que também é possível transformar uma massa muito pequena, em uma energia muito pequena. Aí a coisa já começa sair da física teórica — oh glória — e começa passar para física aplicada— toda hora é isso véi — .

Processo de fissão nuclear do Urânio.

É o seguinte, o átomo de U-235 têm 92 prótons e 143 nêutrons. Desse jeitinho aí ele fica estável, só que basta a adição de uma única unidade de nêutron a mais para que ele fique indignado, aperreado e antipático. Tencionando uma nova estabilidade, o momentaneamente U-236' se quebra em dois átomos diferentes — liberando energia nesse processo — o isótopo do Criptônio (Kr-92) e o isótopo do Bário (Ba-141), só que ao somar a massa atômica dos dois o resultado será de 233, e isso significa que os 3 outros nêutrons que sobraram serão lançados a uma altíssima velocidade como bolinhas de gude disparadas por uma ponto quarenta. O grande barato aqui é que se tu conseguisse parar o tempo um minutinho e colocasse o urânio — momentaneamente 236 — de um lado da balança, e depois empilhasse o criptônio, o bário e os três nêutrons do outro lado, tu veria que o lado do urânio pesa mais que o outro. Como já dizia Lavosier “Na natureza nada se cria nada se perde, tudo se transforma”, logo, a diferença entre as massa não pode simplesmente ter desaparecido da face do cosmos, o que aconteceu é que uma parte dela foi convertida em uma pequena quantidade energia— a energia atômica, que podemos posteriormente conter e converter em energia elétrica nas usinas ou usar pra medir quem tem o pau maior em impasses geopolíticos — . Só que como eu já disse, tanto a fissão quanto a fusão nuclear são reações em cadeias, então esse processo se repetirá algumas milhões de vezes dentro de uma fração de segundos, portanto um atomo de U-236' se quebra, libera um átomo de Kr-92, um de Ba-141 e mais 3 nêutrons, que por sua vez acertam mais 3 átomos de U-235 que liberam mais 3 átomos de Kr-92 e Ba-141 e mais 9 nêutrons que acertam mais 9 átomos de U-235[…]. Dessa forma, a energia liberada por um único átomo de urânio é de fato irrelevante, mas 1 grama de urânio possui cerca de 25 sextilhões de átomos — cruz credo pai amado que número feio da disgraça—, ou se preferir 2,5 .10²¹ átomos de urânio — bem melhor — . Subitamente nossos 7 quilos já não parecem mais tão pouco não é. A energia liberada pela fissão completa de 1g de urânio é sufuciente para abastecer todas as casas da sua rua por um mês inteiro. Durante toda década de 30 a energia atômica foi uma promessa de fonte barata de energia para os países mais pobres e menos privilegiados por recursos naturais. Claro, Einstein estava certo, e havia profetizado isso com 35 anos de antecedência. Contudo, essa euforia otimista não viria a durar muita coisa.

1938, durante o governo nazista, o químico alemão Otto Han ganha o Nobel por realizar a primeira fissão nuclear do urânio. 1939, Einsten escreve uma carta ao presidente americano Franklin Roosevelt para avisá-lo que os nazistas provavelmente já possuíam armamento nuclear — spoiler alert: não, não possuíam — e que era de imprescindível importância que os Estados Unidos soubessem disso — maria fifi— . 1955, Einstein falece numa manhã de segunda devido a um aneurisma da aorta. No mesmo ano, o químico Linus Pauling — ele mesmo, do Diagrama de Pauling [1s² 2s² 2p6 3s²…]— , amigo próximo de Einstein, revela a imprensa que durante uma das visitas que fazia ao físico, ele lhe confessara com lágrimas nos olhos que o tamanho do seu arrependimento pelo dia no qual escreveu a carta só se comparava ao seu desejo de nunca tê-la enviado.

CAPÍTULO 3 - DEUSES DO VENTO, SENHORES DO DESERTO DE VIDRO, E A ROSA SEM PERFUME

Robert Oppenheimer (1955)

1939, após receber a carta de Einstein, o presidente Roosevelt imediatamente dá início ao grande programa de pesquisa que visava o desenvolvimento da primeira arma nuclear, codinome Projeto Manhattan. A frente do projeto, estava talvez a figura mais complexa do século XX — frequentemente referido nos dias de hoje como pai da bomba atômica — , o brilhante físico americano Robert Oppenheimer. Após seis anos de pesquisas — incontáveis falhas e algumas fissões bem sucedidas — os cientistas aperfeiçoaram e sofisticaram o processo de extração, enriquecimento, separação de isótopos, centrifugação, separação eletromagnética periódica, difusão gasosa e difusão térmica do urânio e do plutônio. Finalmente, em 1945, o Projeto Manhattan estava pronto para o seu primeiro teste prático, o teste que mudaria para sempre todo o curso da história humana.

Resíduo vítreo de Trinitita, coletado do solo desértico de Alamogordo.

Segunda-feira, 16 de julho, dia do teste que ficaria conhecido como “Experiência Trinity”. O artefato foi batizado de “O Dispositivo”. O local escolhido foi o isolado deserto de Alamogordo no extremo sul do estado do Novo México. O deserto foi equipado com diversas câmeras para registrar toda experiência por múltiplos ângulos. A 20 quilômetros do raio de detonação os cientistas se posicionaram com óculos escuros especiais para protegê-los das nocivas ondas de comprimento ultravioleta, apenas Oppenheimer não os usou. Uma contagem regressiva de 20 minutos foi iniciada. Na equipe de cientistas do Projeto Manhhatan, sobre direção direta de Oppenheimer, estão pelo menos cinco vencedores nobéis: Niels Bohr, inventor do modelo atômico que carrega seu nome e é utilizado até hoje, profeta do magnetismo e apaixonado por filosofia. Enrico Fermi, italiano que refinou o processo de fissão nuclear, passou mais tempo como professor do que como cientista, era conhecido por inspirar seus alunos com simplicidade e atenção aos detalhes. Hans Bethe, judeu refugiado da Alemanha nazista que se consagrou no estudo da nucleossíntese estelar, ou seja, vocês já perceberam que o sol tá pegando fogo eternamente e não tem ninguém jogando lenha nele? James Chadwick, o homem que descobrira e provara a existência do nêutron, era também grande fã de Shakespeare e preferia as comédias do que as tragédias. Richard Feynman, pioneiro da mecânica quântica quando ainda era underground e criador da técnica Feynman de estudo — que ajuda pessoas com cérebro de paçoca como eu a entenderem assuntos relativamente complicados como reações nucleares — , é de conhecimento público que Feynman amava o Brasil, a língua portuguesa e a Bossa Nova.

A detonação causa uma onda de choque que leva 40 segundos para chegar aos cientistas, e ao alcançá-los trinca o para-brisa do carro estacionado. O cogumelo atômico, que é como passou a ser chamada a fumaça e a poeira da bomba, se eleva a 12 quilômetros de altura. Para conseguir mensurar a energia liberada por essas armas colossais foi estipulada uma escala de equivalência em quilos de TNT. O Dispositivo liberou 19 quilotons de energia o que é equivalente a 19 mil toneladas de TNT. Alguns deles riram, alguns choraram, a maior parte ficou em silêncio, mas todos ali sabiam que a partir daquele momento nada mais seria como antes. Oppenheimer inicia a Era Atômica com sua infame citação, um trecho do poema sagrado hindu Bhagavad-Gita, “Se o brilho de mil sóis explodisse no céu, isso seria como o esplendor desse poderoso ser. Eu tornei-me a morte, a destruidora de mundos”. Frank, irmão de Oppenheimer, cai de joelhos e declara incrédulo “Funcionou”. Chadwick, na tentativa de ser menos poético — ou talvez ainda mais —, replica “Somos todos uns grandes filhos da puta”.

A citação de Oppenheimer não é uma frase de efeito vazia. Nos versos sagrados, o príncipe Arjuna é guiado para uma grande batalha pelo seu cocheiro de carruagem Krishna, encarnação do deus Vishnu, sustentador do cosmos. O príncipe está inquieto e aflito pois no exército inimigo estão muitos dos seus amigos e até familiares próximos. Durante o percurso, Krishna o ensina sobre uma filosofia transcendente que o ajudará a completar sua tarefa apesar das suas preocupações pessoais, pois, a despeito das consequências da suas ações, você não pode escapar do seu dharma — dado que hinduísmo concebe o tempo de uma forma não linear, tudo é aquilo que deve ser e do modo como já foi — . Ao final, Krishna revela-se sob a forma de Vishnu, celestial e aterrorizante, para motivar a Arjuna cumprir o seu dever e lutar, pois só ela Krishna avatar de Vishnu, decide quem vive e quem morre, e portanto cabe a ele, Arjuna, não se lamentar nem se regozijar com o que já foi decidido pelo destino, mas ao invés disso, sublimemente desapegar-se dos resultados porque existe apenas uma grandiosa consciência para a qual toda a criação é uma teatro maravilhoso. Oppenheimer não foi capaz alcançar a paz de Arjuna.

No solo foi aberta uma profunda cratera de 330 metros, o calor liberado pela bomba instantaneamente fundiu a areia do deserto — majoritariamente composta por sílica — em um tipo de vidro verde claro, bonito, mas medianamente radioativo. Toda superfície da cratera está coberta por esses resíduos vítreos que foram chamados Trinitita. A trinitita foi durante muito tempo usada como artigo de joalheria até seus efeitos perniciosos serem descobertos e mensurados. Atualmente o governo americano considera crime federal retirar trinitita de Alamogordo, no entanto, ainda é possível comprar algumas gramas pela internet — você não ouviu isso de mim — , é um souvenir bem charmoso. Passamos da lâmpada incandescente a senhores do deserto de vidro em apenas seis décadas. Tire um minuto para processar essa informação.

A Segunda Guerra Mundial (1939–1945) foi um período da história de intensos conflitos diplomáticos, reorganização política, desenvolvimento bélico e trairagem entre as nações. O bloco totalitário do Eixo era formado pela Itália fascista de Mussolini, a Alemanha Nazista de Hitler e o Império Japonês Meiji. Do outro lado, os Aliados eram formados pelo Reino Unido, França, Índia, África do Sul, boa parte da América Latina, Canadá, União Soviética e o rottweiler de focinheira, que na época era o vulgo dos EUA. Apesar de em menor número e muito atrás em tecnologia, os fascistas tinham um vantagem que precisava ser levada em conta: disposição para a malevolência. É comum as pessoas voltarem os olhos ao horror do holocausto nazista — ou a marcha dos fascistas sobre Paris — e acabarem esquecendo-se que os principais conflitos que iniciaram e terminaram esta guerra estão associados ao Japão. Saído de uma era feudal marcada por samurais e dinastias, o Japão passou por um rápido processo de industrialização e negação da própria história. Contudo, apesar da criminalização do coque samurai, bushido e apresentações com katanas, o espírito de honra e devoção continuou sendo cultivado nos japoneses, mas dessa vez de uma maneira tortuosa e contaminada por um viés militar nacionalista. O resultado foi a Unidade de Ataques Especiais Vento Divino, ou só Kamikazes (kami= deus + kaze=vento). Os Kamikazes eram pilotos ágeis e habilidosos que pilotavam aviões de pequeno porte abarrotados de explosivos na maior velocidade possível com a única intensão de maximizar o dano às tropas inimigas nesse processo. Há muita discussão sobre isso hoje em dia, mas a partir de diários dos pilotos foram traçadas algumas características dessas tropas, que inclusive se mostravam muitas vezes contrárias ao próprio sistema. “Não por glória ao Japão, muito menos pelo Imperador, mas pela minha única chance de talvez salvar minha amada esposa Aiko”, escreveu Seki, mais famoso dos kamikazes. Portanto basta dizer que por motivos sociológicos não tá dando pra jogar os cara no mesmo balaio dos homens bomba. O fato é que em dezembro de 1941, quatro anos antes da Experiência Trinity, os Kamikazes ficariam conhecidos no ocidente por protagonizarem o ataque estratégico à base naval americana de Pearl Harbor, numa demonstração de até onde o Império do Sol Nascente estava disposto a ir nessa guerra. Já a estratégia de guerra americana (apelidada posteriormente de mad dog) consistia em reagir a atos de guerra de um modo absolutamente desproporcional, a retaliação teria de ser catastrófica de tal forma que inibisse qualquer motivação do inimigo para uma possível represália. Foi nesse dia que os japoneses tiraram a focinheira do cachorro louco.

Kamikaze preparando-se para uma missão (1944)

6 de agosto de 1945, vinte dias depois de Trinity, um b-29 larga sobre a cidade de Hiroshima a bomba Little Boy. Em terra a explosão atinge imediatamente 10 milhões de graus, e com isso oblitera uma área de 12 km², doze quilômetros quadrados que foram simplesmente varridos para o esquecimento instantaneamente após serem tocados pelo calor equivalente a um décimo do sol. 80 mil japoneses foram mortos, 60 mil civis e 20 mil soldados, e outros 70 mil foram feridos ou mutilados por uma onda de choque que viajava mais rápido que a velocidade do som. 70% da cidade foi completamente destruída e 10% ficou seriamente danificada. A energia liberada foi de aproximadamente 13 quilotons, 13 mil toneladas de TNT. A destruição deixou para trás a radioativa rosa de Hiroshima que alcançou 18 quilômetros de altura. É impossível saber ao certo quantas das pessoas que sobreviveram tiveram que lutar contra as consequências biológicas associadas aos efeitos estocásticos da radiação, como hemorragia, deformação e destruição tecidual, esterilidade, câncer e mutações genéticas.

9 de agosto de 1945, três dias depois do bombardeio de Hiroshima, um segundo b-29 lança sobre o porto de Nagasaki a bomba Fat-man. O artefato teve um rendimento de 21 quilotons de TNT, apesar disso cerca de 30 mil japoneses foram mortos e 40% da cidade destruída. O mais provável é que a geografia da cidade, que é transpassada por montanhas, tenha ajudado a dissipar a onda de choque e mitigar os danos causados. 12 de agosto de 1945, três dias depois do bombardeio em Nagasaki, o Japão assina a rendição e negocia a paz, fato que marca o fim da Segunda Guerra Mundial. No mesmo ano um consenso entre todos os países levaram a criação da Lei de Energia Atômica nos EUA, para tratar sobre a regulação das armas nucleares. O episódio de Hiroshima e Nagasaki nunca mais deveria se repetir, não intencionalmente, não acidentalmente mas sobretudo, não por ignorância.

CAPÍTULO 4 - ALERTA DEFCON 2: ACIONEM O RELÓGIO DO JUÍZO FINAL

Representação artística do Relógio do Juízo Final (2012)

Depois de assinada a Lei Americana de Energia Atômica o Projeto Manhattan foi oficialmente extinto em 1946, ano seguinte ao fim da guerra. Todos os cientistas presentes em Trinity formaram o comitê de diretores do Boletim De Cientistas Atômicos, que é publicado gratuitamente a cada dois meses pela Universidade de Chicago até os dias hoje. Um relógio a 15 minutos da meia-noite estampa a capa de todas edições. O Relógio do Juízo Final é um relógio metafórico no qual a humanidade está a minutos da meia-noite, e meia-noite representa a aniquilação da espécie. O design do relógio foi concebido pela artista Suzanne Langsdorf, esposa de um dos cientistas do Projeto Manhattan — falecida em 2013 — . O horário é discutido entre o comitê e ajustado a cada janeiro de acordo aos acontecimentos mundiais significativos.

Acontece que a maior parte do comitê original já faleceu e aparentemente o relógio gradualmente foi perdendo a relevância que outrora possuía. Penso eu que isso se deve a principalmente dois fatores: um, a manutenção e divulgação do boletim era primariamente motivada pela culpa descomunal dos envolvidos no Projeto Manhattan — que desaguou nos episódios Hiroshima e Nagasaki — e agora que suas consciências jazem na pedra, ninguém mais parece de fato se importar com o holocausto nuclear porque isso já soa velho demais para nós; e dois, as pessoas não fazem a menor ideia do quão perto já passamos de mandar tudo isso aqui pelos ares. Se você, diferente de mim, tem uma vida normal e procura manter a sanidade não deixando que fantasmas de um século passado sussurrem gracinhas no seu ouvido, imagino que esteja por fora das novidades — no caso nem tão novidades assim, tudo isso já é História com h maiúsculo e é particularmente engraçado realizar que o quanto sabemos de História pode ser mais ou menos comparado com o quanto os americanos médios sabem de Geografia — , mas durante a Guerra Fria, devido a algumas discordâncias sobre se a melhor forma de apagar nosso mapa era o capitalismo ou o comunismo, nós quase adiantamos as coisas pra resolver essa questão de uma vez por todas. Desse modo, algumas coisinhas relacionadas aquele acordo de “então todo mundo aqui jura por deus nunca mais mexer com essas coisas né” mudaram bastante. Por exemplo, podemos começar com aquela vez em 1961 que os EUA estavam transportando duas bombas atômicas e, enquanto sobrevoavam a cidade de Goldsboro no estado da Carolina do Norte, o avião teve um problema — que até hoje não foi exatamente esclarecido — , e sua asa começou a se desintegrar em pleno vôo. Durante a queda as bombas foram lançadas com o paraquedas de segurança e o impacto da aterrisagem foi drasticamente atenuado quando a bomba ficou pendurada pelo paraquedas em uma árvore. Exatamente isso que você leu, os americanos já ficaram a uma árvore de detonar atômicamente o próprio estado.

Bomba em Goldsboro em 1961

Outro episódio que merece destaque é a Crise dos Mísseis de Cuba, evento histórico que escalou tão rápido que nem tiveram tempo suficiente para ajustar o relógio. O B.O foi o seguinte, em 62 — um ano depois de quase se explodir — os EUA estavam com misseis balísticos na Turquia e na Itália apontados para União Soviética, então os soviéticos que não são idiotas nem nada pediram licença pra Cuba e perguntaram se eles podiam deixar coisa de uns 40 desses misseis ali pelo Caribe, apontados para cara desse povo do Norte, a pretexto de defesa é claro, só para caso qualquer coisa acontecesse lá do outro lado mundo; o camarada Fidel Castro respondeu que era até melhor já deixar no jeito de só apertar um botão porque é desse povo amarelo que ele tinha medo. Sabendo disso, o presidente americano John Kennedy decidiu fazer um bloqueio naval e interceptar todas as cargas de mísseis em direção a Cuba. O primeiro ministro soviético Nikita não gostou nada disso e enviou uma mensagem a casa branca ressaltando que bloqueios navais em águas internacionais configurava um ato de guerra, a qual obteve a resposta de que aquilo não era um bloqueio pois mercadorias e suprimentos não estavam sendo impedidos de entrar no país, só mísseis. Se seguiram então os 13 dias mais angustiantes da história. Os Estados Unidos continuavam pedindo a retirada dos mísseis enquanto a URSS e Cuba rebatiam dizendo que eram exclusivamente para defesa, a história ficou tensa mesmo quando um avião espião americano foi abatido em cuba durante uma missão de reconhecimento, mas não antes do piloto comunicar a quantidade de mísseis que vira. No mesmo dia um submarino soviético foi atingido com uma carga explosiva sinalizando que ali era o limite das águas americanas, no entanto, fundo demais para contatar a superfície, os tripulantes acharam que a Terceira Guerra já teria começado e decidiram lançar um míssil de 10 quilotons. Sem comunicação com Moscou, para soltar o boneco seria preciso a confirmação unânima de três oficiais, o capitão do submarino e o comissário político autorizaram, mas Varsili Arkhipov, segundo em comando, recusou-se. Naquele dia sua decisão provavelmente evitou o verdadeiro início da Terceira Guerra e provavelmente também a aniquilação nuclear.

Varsili Arkhipov (1962), além de sensato o cara era presença.

Contudo, a crise ainda não havia acabado. Os EUA entraram em condição de defesa DEFCON 2 pela primeira vez na história. DEFCON é uma escala militar norte americana que representa o estado de alerta atrelado a diversas ações que são mobilizadas durante esse estado. A escala começa no 5 que representa o estado de prontidão normal e vai até o 1 que representa eminente eclosão de guerra nuclear, isso se ela já não estiver em curso. Apenas para fins comparativos no atentado ao World Trade Center no 11 de setembro, foi acionado o DEFCON 3 o que significa que toda força aérea americana já estava monitorando os céus 15 minutos depois do ocorrido. Felizmente a diplomacia também estava trabalhando e nesse tempo o procurador geral americano Robert Kennedy entrou em acordo com o embaixador soviético Anatoly Dobrynin. Após uma negociação extenuante, ficou acertado então que os EUA iriam retirar os mísseis da Itália e Turquia e a URSS iria retirar os seus de Cuba e deixar essa conversa de apocalipse pra lá, adiar uns dias quem sabe. Assim foi posto um ponto final na Crise dos Mísseis de Cuba.

Não posso esquecer daquela outra também, tão bizarra que é o tipo de coisa que só pode ter acontecido nos EUA. Sabe aquelas erupções solares? Aquelas explosões na superfície do sol que liberam bastante calor, radiação e bagunçam o campo eletromagnético, pois é, teve uma dessa em 1969. O problema é que o presidente da nação mais poderosa do ocidente era o merda do Richard Nixon — não vou por uma foto dele aqui não porque só a face desse indivíduo já me dá raiva — , aí durante uma dessas explosões os radares das aeronaves ficaram malucos e um dos aviões de reconhecimento americano entrou no território da Coreia do Norte e foi imediatamente abatido. Aí Nixon — supostamente bêbado — deu ordem para um ataque de retaliação com um míssil nuclear de 10 quilotons. Felizmente, o então primeiro ministro Henry Kissinger conseguiu intervir ao contatar diretamente o secretário do exército antes do lançamento ser feito e graças a isso… bom, graças a isso ainda estamos por aqui. É patético como os historiadores americanos tentam vender Nixon como uma espécie de diplomata e estrategista de guerra que tinha os nervos de aço e as ações minuciosamente calculadas para só parecer agir como um louco, quando na verdade tudo se tratava de um plano complexo dele para proteger a soberania americana e os valores ocidentais. Americanos têm um sério problema com delírio de grandeza e complexo de messias, por isso que volta e meia eles tentam explodir tudo, e qualquer idiota que percebe isso logo se elege presidente.

CAPÍTULO 5 - DESTRUIÇÃO MÚTUA ASSEGURADA: O ALVORECER DO SEGUNDO SOL

Eu passei boa parte desse ano lendo “Graça Infinita” do David Foster Wallace. Acho que demorei tanto menos por causa das mil e trezentas páginas e mais pela densidade dos assuntos que Dave traz a tona. Um dos núcleos da história trata de uma academia de tênis onde o protagonista Hal e outras crianças são incessantemente treinadas e preparadas para pleitear no futuro uma vaga no circuito profissional. Aqui o principal assunto é a sutil transição de uma cultura outrora pautada em valores morais para uma que endeusa o sucesso e a produtividade como único valor absoluto, e a verdade é que, de fato, não é tão difícil ser produtivo, ou dizendo ainda de outra forma, é bem possível pegar gosto pela produtividade obsessiva desde que você a alimente com uma competitividade hostil sustentada por psicotrópicos que podem te ajudar a se manter totalmente focado enquanto eles dormem. Nunca tire os olhos do prêmio. O problema é que o prêmio não é real, nunca foi. Nos únicos três dias de férias dos garotos — no fim de ano — eles se reúnem na quadra de tênis para jogar um jogo que não tem nada a ver com tênis, o Eschaton. Quatro quadras representam o mapa mundi, os meninos são os presidentes das nações, cada nação possui uma quantidade de ogivas nucleares — bolas de tênis — que é verossímil a quantidade que as nações possuem no mundo real, as regras do jogo e suas consequências são dolorosamente reais como por exemplo o cálculo do raio de destruição que leva em conta a dispersão da nuvem de radioatividade de acordo ao clima do local atacado. Eles fazem acordos diplomáticos entre si a fim de evitar a inevitável destruição completa do mundo e quem tiver a melhor relação dano causado/dano sofrido vence. Se o mundo for destruído ou terminar inabitável para os seres humanos todos perdem. Esse é o dia de férias dos garotos. Dave é brilhante na sua brincadeira porque ele sabe que as regras que regem a corrida armamentista e a diplomacia nuclear são fundamentalmente as mesmas que regem os jogos de tabuleiro multiplayer como War. O Equilíbrio de Nash é uma dessas regras do universo que a gente não inventa mas descobre, e ela engloba jogos, diplomacia e teoria da evolução das espécies. A Teoria de Nash representa uma situação qualquer de interação multiplayer na qual nenhum dos participantes tem vantagem ao mudar sua posição de combate unilateralemente. Assim, mesmo se os participantes não estiverem dispostos a cooperar, minto, necessariamente porque os participantes não estão dispostos a cooperar e determinados a buscar individualmente a melhor condição para si, é que uma condição de estabilidade será naturalmente alcançada com o tempo. Logo, quanto mais destrutiva fica a indústria bélica menor a chance de entrarmos em guerra e portanto mais seguros ficamos, certo? Eu não sei você, mas eu definitivamente não engulo essa, tenho certeza que esse tal de Nash nunca viu a poha de uma bomba termonuclear na vida.

30 de outubro de 1961, 16 anos depois de Hiroshima e Nagasaki a humanidade faria o que jurou não mais fazer e conjuraria um segundo sol sobre a superfície da terra. A União Soviética cospe na cara de Deus e consuma o teste da arma mais colossal já produzida: A bomba de hidrogênio, codinome Tsar. Seu funcionamento é um pouco diferente — muito diferente — das bombas de fissão nuclear. Qualquer pessoa um pouco mais espantada e que não vê o mundo como um mar calmo de obviedades já deve ter se perguntado porque o sol é quente e de onde Deus tira tanta querosene pra manter ele aceso. Hans Bethe — ele mesmo, o do Projeto Manhattan — era uma dessas pessoas, ele foi um dos principais teóricos da nucleossíntese estelar. O que pega é que no núcleo dessas grandes e densas estrelas há o constante processo de fusão de dois hidrogênios — um deutério e um trítio (capítulo 1) — em um hélio, e depois de dois hélios em um carbono, e depois em outros metais pesados. Foi a isso aqui que o astrofísico Carl Sagan se referia quando poeticamente disse que todos nós somos poeira das estrelas, o carbono que compõe a matéria do que você conhece como “eu” foi um dia gerado no útero de uma grande estrela e vai um dia voltar para ela só pra começar tudo de novo. Chega a ser good vibes isso, só que daí a gente aprendeu a fazer também, porque esse processo de juntar núcleos menores em maiores libera uma quantidade bem maior de energia do que quebrar os núcleos maiores em menores. O poder de destruição de uma arma dessas faria a bomba de fissão parecer um estalinho de salão. O problema é que para fazer a fusão acontecer você precisa antes de uma grande quantidade de energia na forma de calor, e onde caralhos a gente conseguiria 10 milhões de graus celsius para fazer isso funcionar?… Humm… Acho que tenho uma vaga ideia de onde arrumar isso.

Toda bomba de fusão têm duas fases, a primeira é uma bomba de fissão que vai ser ativada, detonar e nesse processo gerar instantaneamente muito calor, e aí imediatamente o núcleo da bomba vai realizar a fusão do hidrogênio em nano segundos e liberar todo o seu verdadeiro potencial destrutivo, esse ciclo inteiro leva cerca de 30 milésimos de segundo. Por isso o nome bomba termonuclear. Se sua pergunta é “destrutivo quanto?” talvez prefira ver por si mesmo. As filmagens do teste receberam o maior grau de confidencialidade soviética, contudo foram reveladas pela Rússia esses dias aí em 2017 e podem ser vistas por qualquer um. O teste foi feito em um arquipélago já próximo do Círculo polar ártico, os aviões encarregados do bombardeio tinham apenas 30% de chance de atingir uma distância segura do raio de explosão antes da bomba atingir o solo — o que configurou o próprio teste como uma missão suicida. A energia liberada foram de inacreditáveis 50 megatons, ou 50 milhões de toneladas de TNT, o que dá 5,3 vezes 10 elevado a 24 watts — meu repertório acabou, espero que tenha dado para ter uma ideia — , o cogumelo atômico alcancou 60 quilômetros de altura, ultrapassando a estratosfera e pôde ser literalmente vista do espaço. A boa notícia é que já faz mais de 60 anos que isso aconteceu, a má notícia é que o desgraçado do Nikita já tinha avisado que esse era só o protótipo e a Rússia já teria uma nova bomba mais sofisticada com poder estimado em 100 megatons.

O acrônimo MAD ou Mutual Assured Destruction (Destruição Mútua Assegurada) é simultaneamente uma doutrina estratégica militar e uma política de segurança nacional. Ela parte do presuposto do Equilíbrio de Nash no qual em um eventual impasse nuclear, ele poderá ser evitado pelas próprias armas nucleares — ô conversa de maluco pivete — . As ogivas evoluíram tanto que a verdade verdadeira é que não existem mais defesas antimísseis que consigam interceptar mísseis atômicos supersônicos que viajam 5 vezes mais rápido que o som, logo em um caso de lançamento nuclear, ele vai atingir seu alvo, ponto. Contudo no meio tempo entre a detecção dos radares e o desaparecimento completo do seu país você também pode lançar suas próprias ogivas que também são supersônicas e então podemos ir nós dois abraçadinhos para o quinto dos infernos. Nesse sentido, a ideia é que racionalmente nenhum dos países chegaria a lançar, pois aquele que o fizer primeiro estará não condenando a nação inimiga mas a sua própria e levando o mundo inteiro consigo. Primeiro que eu acho de um extremo mal gosto que um engraçadinho tenha demandado tempo para conseguir fazer de uma situação dessas uma piada — MAD em inglês é Louco/Insano — , dito isso, é claro que essa teoria daria certo SE fôssemos racionais, no entanto, se não me falha a memória, o termo antropológico correto para humanos é estúpidos de merda. Os jogos de Eschaton sempre terminam em MAD. No começo todos os garotos são peaky blinders, blocos de gelo frios e calculistas, mas no fim não passam de crianças escravas dos seus sentimentos com boa pontaria e muitas ogivas nucleares.

EPÍLOGO: 1 E 20 PARA MEIA NOITE

Watchmen, Capítulo 4 (1986)

“O que há em mim é sobretudo cansaço, nem disto nem daquilo, nem mesmo de tudo ou de nada, ainda assim, ele mesmo, cansaço”, Fernando Pessoa. Um sentimento semelhante me preencheu enquanto escrevia e revisava cada pedacinho dessa reflexão que tive. Como se ficasse mais claro a cada palavra escrita que a humanidade é isso aí e provavelmente assim o será para sempre. Acho que nem o calor, nem a chuva, nem a neve ou a escuridão da noite serão capazes de impedir esses lápis supersônicos de concluírem sua missão. A guerra fria acabou em 91 mas o perigo real, a guerra metafísica, está sempre a espreita aguardando a sua oportunidade. E tudo isso porque descobrimos tecnologia do século XXIII no século XX, ainda somos primitivos demais para lidar com essa merda, e ironicamente estamos insensíveis a ela devido a presença constante das armas nucleares no entretenimento e na mídia, de tal forma que esqueçemos que isso é real, tão real que se não estivermos constantemente vigilantes 100% do tempo o apocalipse pode acontecer a qualquer hora — e independente de onde você esteja, fique tranquilo, ele irá até você — e será então o fim de tudo, possivelmente o fim da única instância de vida que já se deu em todo o universo, porque essa vida aqui ganhou consciência e evoluiu o suficiente para usar armas nucleares e dar um fim teatral a si própria. Consigo ouvir Freud gargalhar no além túmulo. Não costumo escrever em tom irônico nem engraçado mas foi nesse tom que os pensamentos vieram a mim. Tem algo de trágico nessa história toda que não consegue se revelar mas pode ser tateado através da comédia. O relógio nunca esteve tão adiantado e o tempo tão breve. Em 2020 ele foi ajustado em 100 segundos para o fim, e pela primeira vez por causas não nucleares, mas por impasses diplomáticos, pela pandemia e pelo gritante fracasso em combater as mudanças climáticas. Porque claro, se as bombas não pegarem a gente o planeta pessoalmente vai fazer questão de por um ponto final nessa história. 1 minuto e 20 segundo para meia noite baby, só se vive uma vez, o armagedon nuclear não vai a lugar algum e nós também não. Einstein disse que não sabia com quais armas a 3ª Guerra Mundial seria travada mas com certeza a 4ª seria com paus e pedras, eu acho é que esse velho ainda permaneceu muito otimista depois de tudo que viu. Talvez a verdade com v maiúsculo tenha saído da boca do personagem mais detestável da HQ Watchmen (Alan Moore, 1986): “Não é preciso ser um gênio para ver que a humanidade tem sérios problemas mas é preciso uma sala cheia de idiotas para acharem que podem lidar com eles. Os homens têm se matado desde o início dos tempos e finalmente agora temos poder suficiente para terminar com isso. Não faz mais diferença, nada mais importa porque quando as ogivas começarem a voar todos nós seremos pó, e nosso amigo Ozymandias aqui, intelectual e de fala mansa, será o mais inteligente das cinzas”.

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𝒉𝒂𝒍 𝒌𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒛𝒐𝒗

um nephilim, por vosso pai condenado, a vagar com seus dias contados tomado pela constante urgência de dizer algo que é, por natureza, incomunicável.