Crime e Castigo, ou a Infindável Busca Pela Redenção em Dostoiévski

“Só é dado o poder a quem se atreve a inclinar-se para apanha-lo.”

Não há nesse mundo trabalho mais ingrato, frustrante, apequenador e humilhante ao literata, que dissertar sobre qualquer obra de Fiódor Dostoiévski. E tu veja a prepotência — Ou soberba, para usar uma palavra que está na moda — escolhe logo seu mais conhecido clássico. Pois bem, se desejas tanto essa tortura, que assim seja então, quanto mais amargo melhor… Teria dito Freud — que parece também estar na moda — sobre Crime e Castigo qualquer coisa como “Eu nunca termino de ficar impressionado com o fato de que demoro séculos para elaborar uma ideia que Dostoiévski simplesmente, e com infinita graça, coloca em uma frase”. Ele não estava apenas exagerando para demonstrar sua reverência a um autor que muito apreciava, na verdade, dizer que o pensamento de Dostoiévski viria a servir como base da psicanálise e do existencialismo, pode até não ser uma afirmação óbvia para alguns, mas está longe de ser ousada. Sigamos por partes.

Se tu não conhece Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski isso é uma falha de caráter sua. Imagine só, ser extinto em meio a uma pandemia sem jamais ter lido tão brilhante sujeito? Ou ainda pior que isso, viver toda vida a espremer seu juízo com situações e dilemas que poderiam ser resolvidas com um livro de mais de 150 anos atrás; Sim, sim… uma falha moral eu insisto! (Salvo os masoquistas, toda raça de autossabotadores e misantropos) Se tens algum medo de lê-lo pela reputação que o precede, dedicarei preciosos minutos para persuadi-lo do contrário, pois acredito genuinamente que seus livros — Tudo bem, densos que sejam, eu não discordo, mas completamente inteligíveis e com uma prosa tão viva que torna fácil a leitura — são definitivamente para qualquer um. Dostoiévski viveu pela metade do século XIX no Império Russo czarista, seus pais morreram quando era novo, não era abastado mas também não era pobre; deu início a sua carreira militar como estudante de engenharia na academia de São Petersburgo, onde teve contato com a literatura e autores que viriam a inspira-lo (destacam-se Tolstói e Schiller muito citados em seus livros), fizera relativo sucesso logo em sua primeira publicação. Após o jovem ser seduzido por ideias de reforma socialistas e ingressar em círculos de intelectuais para discutir textos proibidos, fora apanhado e condenado a morte pelo czar. Quando encontrava-se já amarrado em frente ao pelotão de fuzilamento; eis que chega então uma carta do czar, a qual informava uma súbita mudança de ideia; e que os réus deviam ser mandados para os campos de trabalho forçado da Sibéria ao invés de executados, essa experiência de quase morte mudou Dostoiévski para sempre.

Após isso passaram-se cerca de 4 anos de trabalhos forçados em uma fortaleza na Sibéria e 6 anos de serviço militar obrigatório. Essa trágica virada em sua vida fez com que ele se convertesse ao cristianismo ortodoxo além de provocar uma desconfiança hostil frente a qualquer filosofia utópica ocidental, e suas pretensões de saciar os contraditórios e paradoxais anseios da alma (leia psiquê se preferir). Nele formou-se também uma visão muito mais pessimista frente a reforma social, completamente desacreditada de que qualquer mudança vinda dos socialistas pudesse vir para o bem, e de certo modo, estivera certo. Ao regressar a São Petersburgo, agora livre dos grilhões, viria a publicar os livros que lhe deram a fama que possui hoje, dentre eles: Crime e Castigo (1866), Notas do Subsolo (1864), O Idiota (1869)e Os Irmãos Karamazov (1879).

“Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas. Apenas a Beleza salvará o mundo.”

Esse pequeno plano de fundo é necessário para compreendê-lo — Como se algum de nós fosse realmente capaz desse feito— e, se me permite um conselho, nada ajuda mais na leitura de um clássico que humildade. E digo sem romantismos pois outro livro que terminei nesta quarentena foi o Diários de Kafka: 1909 á 1912; nele, certo dia o melhor amigo de Kafka, Max Brod, critica Dostoiévski dizendo que suas obras são moralizadoras por demais, Kafka discorda e o insulta, como é mais que comum entre amigos, depois escreve sobre como Max não havia na verdade entendido o livro, por ser ainda novo demais para lê-lo. Há aqui uma grande lição; se possui o mínimo de humildade e tem o brio de não querer parecer um idiota, não critique um clássico, quando você critica um clássico sempre queima a si mesmo e nunca ao clássico. Não se trata de construir-se um dogma sobre qualquer obra, mas fato é: É infinitamente mais provável que você seja simplesmente ignorante demais para o texto, do que o autor superestimado, palavra, criticas são importantes e devem ser feitas, mas antes disso levaria ao menos quatro anos de leitura em russo para de fato entender toda a obra e pelo menos mais um para que consiga elaborar um crítica mais ou menos bem articulada sobre. E se o tópico é conselhos sobre clássicos eis aqui mais um: Leia-os. Eu sei o quão é difícil ressuscitar o hábito de leitura em tempos onde o multitasking é a regra, eu sei, mas estes livros possuem um verdadeiro poder de catarse e transformação, é surpreendente o quanto se aprende e amadurece com essas leituras, e ainda torno a afirmar, são livros de arrancar lágrimas de uma estátua. Em minha opinião; eu ouso dizer que metade das psicoanálises poderiam ser evitadas se as pessoas apenas lessem mais; veriam que muitos dos seus problemas que julgam idiossincráticos e absolutamente únicos já foram temas até de tragédias gregas. Dito isso; a obra.

Crime e Castigo é narrado hora por discurso direto hora por discurso indireto livre, desse modo, nos é contada a história de Raskólnikov, um estudante de direito que se vê obrigado a interromper seus estudos pois está decaindo do âmbito da pobreza para o da miséria; logo de cara nota-se que Raskólnikov não é um estudante medíocre, pelo contrário, é com certeza uma pessoa acima da média — Poderia até utilizar brilhante, mas não o farei esse gentileza— . Ele se vê frustrado e humilhado por não poder exercer todo seu potencial e vê-lo desperdiçado por um empecilho tão mundano, ao relembrar o quanto sua mãe e irmã (que moram no interior) se sacrificaram pelo seu sucesso ele resolve por em prática algo que já vinha maquinando a muito tempo; Raskólnikov vai matar o não matarás.

Após penhorar para uma velha agiota seu último objeto de valor, um relógio de prata, herança de seu falecido pai (estava há 3 dias sem comer e já havia vendido até mesmo seus antigos livros de direito); ele pensa: “Porque eu não mato e saqueio essa maldita velha? Esse piolho só faz se aproveitar dos que estão desesperados, paga-lhes um quarto do valor real do objeto, cobra-lhes juros absurdos e ainda espanca a irmã mais nova que cuida dela. Em uma cajadada só eu livro o mundo de sua existência e uso o dinheiro para me formar, e uma vez formado, tenho certeza que contribuirei também para ciência, ao contrário de muitos estudantes medíocres” — Se você fez a lição de casa percebeu que Raskólnikov encarna o niilismo e utilitarismo, duas correntes filosóficas em alta na época, o próprio Nietzsche era um grande fã de Dostoiévski, embora não concordassem uma linha. Em seus romances muitos personagens são representações escatológicas de morais e filosofias, ou seja, agem de modo que levam até as ultimas consequências os valores das filosofias que acreditam (Um exemplo de escatologia contemporânea é a série Black Mirror, um processo escatológico da tecnologia )— E assim ele o faz, armado com um machado Raskólnikov executa seu plano vil e mata a velha usurária; mas sua fortuna termina ai, nada mais ocorre como havia sido concebido anteriormente, e nos é lançada a principal questão do livro: Se deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido?

“O mundo é para aqueles que nasceram para conquista-lo, não para os que sonham com isto”

Ao ver o corpo da velha, desfalecido e deformado pelos golpes, no chão em uma poça de sangue instantaneamente o estudante se dá conta que há um abismo entre idealizar o assassinato e cometê-lo a sangue frio, começa então a saquear em frenesi com urgência de sair logo da cena do crime, mas a irmã da velha entra em casa. Em seu desespero esquecera de trancar a porta do apartamento e agora tinha de dar cabo também da irmã, essa uma pessoa boa e inocente; Quem mata uma vez, mata duas. Por sorte ele consegue se esgueirar para longe da cena do crime sem ser visto, mas seu castigo havia apenas começado.

“Aos grandes homens, aos extraordinários, as leis não se aplicam; Eles pisam nas leis com as ferraduras de seus cavalos”

Abro aqui um parentese para esclarecer uma coisa: Não se tem a pretensão de plot no século XIX, não é esse o ponto do livro, o crime acontece ainda nas primeiras 100 páginas, engana-se se pensa que se trata de uma novela policial onde mistério aguarda sua resolução nas ultimas páginas. Perceba, por exemplo, como Kafka, outro fã de Dostoiévski e famoso escritor do começo do século passado, começa seus dois livros mais famosos (A metamorfose e O Processo) já entregando sobre o que se trata todo o enredo:

Quando certa manhã Gregor­ Samsa­ acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Alguém certamente havia caluniado Josef K, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.

O jovem Ródia retorna para sua casa e se livra das pistas do seu terrível crime, ele começa a somatizar sintomas de esquizofrenia; em decorrência da culpa que o devora, consciência direta do quão terrível foi a realidade do ato que ele havia se atrevido a consumar. É dado início a uma semana de tormentos, irritações e extensos monólogos internos; a escrita consegue lhe transmitir todas as sensações com precisão assustadora, os medos, ansiedades e paranoias do personagem se tornam também as suas. Se você já tiver tido a bravura de confrontar sua sombra (para usar o termo Junguiano) é gerada uma empatia instantânea por Ródion, uma vez que, realiza que no lugar dele, poderia não só ter feito exatamente a mesma coisa, como precisamente desejaria e planejaria fazer-lo — E vou adiante, falo por mim, que tenho absoluta certeza que também levaria até o fim minhas intenções, pois compartilho dos mesmos pensamentos arrogantes, sorumbáticos, fúnebres, cínicos, melancólicos e narcisistas; e me encontraria portanto com o mesmo fim trágico que ele — . É trabalhada por conseguinte toda uma discussão moral a cerca da legitimidade das leis e as consequências de revogar um mandamento divino. Completamente consumido e aos farrapos, o ateu Raskólnikov, caminha até a cheia e imunda praça de Petersburgo; cai de joelhos, beija o chão e o inunda de lágrimas implorando pelo perdão divino, depois vai a delegacia e confessa o crime minuciosamente, e só nos campos de trabalho forçado da Sibéria (o mesmo que o próprio Dostoiévski estivera) encontra sua redenção e alguma paz de espírito.

O personagem Ródion Românovitch Raskólnikov é tão complexo que pode-se toma-lo por real até seu ultimo fio de cabelo, desde suas convicções de que é um homem extraordinário ao qual só lhe são verdadeiros os próprios valores — Dostoiévski ironiza nele o próprio Ubermensch de Nietzsche — até o horror que ele experimenta ao perceber que vive na verdade sobre valores que ele mesmo é incapaz de racionalizar, e portanto, está agora em divida com sua consciência que não lhe deixará em paz. Perceba que esse fenômeno, usar sua consciência como instrumento de tortura, acontece também a você o tempo todo — A menos que seja incapaz de sentir remorso e sendo assim um psicopata por definição — grosso modo sempre que você se distancia do seu ser ideal; apesar de que não possui certeza alguma de como esse ideal é exatamente, consegue ter constantes vislumbres dele. Então sua consciência não te diz exatamente o que fazer, mas sempre diz o que não fazer; e quando, por teima, você o faz, desencadeia o processo de tortura fazendo com que retorne ao caminho que mais assemelhe você a seu ser ideal.

Crime e Castigo é um sucesso por muitos motivos, eu concordo que não é um livro curto nem lá muito divertido de ler, pelo contrário, provocou em mim uma sensação de angústia claustrofóbica, mas também toda a catarse em seu sentido mais absoluto; julgo eu que esse é um prazer um pouco mais sofisticado então não o recomendaria a um adolescente — Ainda mais hoje, haveria o risco de tomarem Raskólnikov por ídolo e ai esta feita a disgraça — . Não tenho certeza agora mas acho que foi a Clarice Lispector que disse “Se o livro que lemos não nos desperta com um soco no estômago, então para que lê-lo?”, eu tenho de concordar inteiramente com ela.

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𝒉𝒂𝒍 𝒌𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒛𝒐𝒗

um nephilim, por vosso pai condenado, a vagar com seus dias contados tomado pela constante urgência de dizer algo que é, por natureza, incomunicável.