Azula: A Tragédia da Princesa Prodígio

A tragédia é um dos primeiros gêneros de drama criados, e também o meu favorito. Acho que todo mundo deveria conhecer Hamlet de Shakespeare. Grosso modo, toda tragédia trata-se da história de um personagem que representa em si todos nós. Essa história sempre possui um começo ameno e termina levando o espectador a se debulhar em lágrimas. O herói é um indivíduo que se mostra elevado em relação a seus pares, possui qualidades acima da média, contudo sempre padece de hybris, isto é, alguma profunda falha moral em seu caráter, geralmente uma arrogância perante os deuses, típica dos grandes guerreiros, ou uma obsessão por vingança, comum a nobres condessas que foram há muito magoadas.

O motivo das tragédias nos cativarem até hoje é porque nós, antes de qualquer coisa, nos compadecemos com seus personagens, eles carregam em seus ombros as nossas inequidades. A sina do herói é que exatamente este pecado o guiará ao seu trágico desfecho, que é necessariamente a morte, a automutilação, ou ainda, a loucura. Mas o segredo que as tragédias guardam — E que fazem chorar mesmo uma estátua — é que não se trata o sobre terrível evento final que sela o destino do protagonista, e sim sobre a impotência e irrelevância de qualquer ação que ele tome para tentar fugir de seu destino anunciado, pois será exatamente esta ação que o fará ser cumprido a risca.

Avatar é uma das minhas histórias favoritas. Tenho noção de como dizer isso se tornou um lugar comum nos últimos anos e, pra ser sincero, fico feliz de que seja tão popular. Eu penso que talvez possa até vir a ser um clássico algum dia. Antes que me acuse de ser pedante — Pois claro que só o tempo é senhor da verdade — deixe-me apenas ressaltar aos desavisados que já se passaram dezesseis anos desde sua estreia, e o show se manter popular e tão relevante quanto na data em que foi lançado certamente significa alguma coisa. Muito desse desenho não ter terminado ainda tudo o que têm para contar se deve ao seu tema principal: Identidade. A jornada de como o garoto no iceberg se tornou o Avatar Aang. É surpreendente também notar como um desenho direcionado e adaptado para um público juvenil consegue transmitir com uma boa precisão as diversas nuances da guerra. Mas sem dúvida o que mais me agrada em todo o drama é a trajetória da princesa Azula, o prodígio da nação do fogo. Hoje quero meditar em voz alta sobre algo que me ocorreu na ultima semana, seria a princesa da nação do fogo passível de redenção? Então este sou eu montando um manifesto em defesa de Azula.

O Prodígio Nascido Com Sorte

Azula é a irmã mais nova do príncipe Zuko e filha do senhor do fogo Ozai. A maior parte da série a temos como a principal antagonista de Aang — Uma vez que Ozai não deixa seu palácio antes do último livro e Zuko nunca foi de fato o vilão — As diferenças entre as personalidades dos irmãos reais são escandalosas, mesmo no primeiro livro já conseguimos ver que, apesar de seu temperamento tempestuoso, há alguma bondade em Zuko. Já Azula se apresenta sempre contida, meticulosa e disciplinada. Não há nada em seus olhos além de ferocidade. Esse perfeccionismo é refletido mesmo no design contrastante dos dois. A cicatriz divide o rosto do príncipe entre quem ele é e quem seu pai quer que ele seja, já o rosto e o cabelo da princesa são impecavelmente simétricos. Se eu tivesse que definir a relação entre os dois em uma sentença usaria as palavras do próprio senhor do fogo: Azula nasceu com sorte e Zuko teve sorte de nascer. Logo na infância a princesa demonstrou um fabuloso talento para a dobra de fogo, isso fez com que seu pai nutrisse um claro favoritismo por ela em detrimento de seu irmão, o que a motivava a melhorar cada vez mais suas habilidades e a fazer qualquer coisa que o agradasse. Contudo, o senhor do fogo não via na sua filha uma aliada digna de carregar adiante o seu legado, pelo contrário, aos olhos de seu pai, Azula não era senão uma excelente ferramenta, uma poderosa arma que ele poderia e iria usar para estender a opressão do império vermelho ainda mais longe. Como Zuko não possuía tal dom, foi negligenciado por seu pai e recebeu não só sua indiferença mas o seu desprezo.

A relação de Azula com seu pai desempenha um papel principal na formação da sua personalidade. O senhor do fogo — Indivíduo maquiavélico por definição — respeita apenas o poder, mas para além dessa afirmação óbvia, sua atitude perante o próprio pai e irmão demonstram uma vacância de empatia, uma incapacidade de enxergar os outros, mesmo os seus iguais, como qualquer coisas a mais que obstáculos e ferramentas a serem utilizados ou superados na sua jornada em direção ao poder. Consequentemente, como toda criança o faz, a princesa admira e respeita a conduta do pai, e inspirando-se nele, fixa o poder como principal valor e intuito final de seu ser. Assim sendo, constrói toda a sua persona baseada em elementos que corroborem com a sua motivação. O resultado é uma dobra de fogo impecável, a única de cor azul, que reflete a singularidade de sua habilidade. A moça também foi a mais jovem capaz de dobrar raios independentemente do seu estado emocional, tamanha era sua determinação. Mas Azula não fez de si apenas uma arma formidável, tornou-se manipuladora de modo a usar todos unicamente como meios para seus fins, uma brilhante estrategista que foi capaz de tomar todo reino de Ba Sing Se sozinha, fisicamente fugaz e esguia, além de uma comandante surpreendentemente aterrorizante para uma adolescente de 14 anos.

No entanto, ao perceber a clara predileção de Ozai pela filha, Ursa, esposa do senhor do fogo e mãe dos irmãos reais, dedicou-se a guiar seu filho — Ressentido pelo inalcançável amor de seu pai e humilhado pelo insuperável talento de sua irmã — na descoberta de sua identidade, mas sem notar que neste processo fazia tal qual o esposo e denotava um favoritismo pelo garoto. Essa falta de um papel materno na formação da personalidade de Azula é a chave do seu final, o que faz da princesa a verdadeira tragédia dessa história.

A Praia

“A praia” é sem dúvida o meu episódio favorito. Nele há todo um trabalho afim de contextualizar e, principalmente, humanizar os vilões. Aqui percebemos que existe uma realidade banal do outro lado da guerra, uma realidade onde os adolescentes existem também como adolescentes. É de certo modo consolador notar que os jovens da nação do fogo, apesar de todos seus privilégios, falham em lidar com seus traumas, traumas estes que reverberam em suas personalidades. Vê-los de férias, tentando lidar com suas imperfeições, lutando para estabelecer laços afetivos entre si, mostrando suas cicatrizes uns aos outros, nos permite sentir empatia por aqueles que víamos até o momento apenas como o braço armado de um estado fascista.

Desde o começo do episódio nota-se que a princesa é demasiada deficiente quando se trata sobre ser uma adolescente normal. Ela foi criada para ser uma conquistadora, e sendo assim se mostra tão competitiva a ponto de não conseguir enxergar nem mesmo um amistoso de vôlei como algo divertido. Para Azula existe apenas a glória na sua vitória e a humilhação na derrota alheia. Além disso ela se mostra completamente inepta socialmente, a mesma garota que tece imponentes monólogos é incapaz de articular um elogio, para alguém por quem sente-se atraída, sem que pareça uma completa esquisita. Sua postura e semblante repelem qualquer um que tivesse a menor intenção de se aproximar, e mesmo quando finalmente consegue o beijo que desejava, logo em seguida afasta seu enamorado ao assusta-lo com sua obsessão e, completamente desnecessária, demonstração de poder.

Você pode ver a praia como uma confirmação do caráter que Azula demonstrou ao longo dos dois primeiros livros, mas eu discordo disso. O que vejo na praia é uma garota que, sim, consegue ser sádica e perversa, mas também é capaz de demonstrar compaixão genuína para com seu irmão, inveja da beleza de sua amiga, desejo de ser vista e de também ser desejada e, principalmente — Claro que a sua maneira — , dor no que se refere ao passado e a relação que possuía com sua mãe.

Colapso e Último Agni Kai

Azula sempre pautou suas relações baseando-se no medo. Claro, você não precisa preocupar-se com a lealdade de seus peões se conseguir amedronta-los ao ponto que lhes falte coragem para te trai, o medo de sua ira e futura retaliação precisa se sobrepor a qualquer benesse momentânea que lhes seja oferecida no presente — Maquiavel certamente se orgulharia — . Contudo, ao optar pelo caminho do medo você abre mão de ter o respeito dos seus companheiros, e consequentemente sabota qualquer afeto que poderia brotar dessa relação. Azula é traída por Mai e Ty Lee porque foi incapaz de perceber que elas não a temiam, na verdade as garotas permaneciam ao seu lado porque eram suas amigas, gostavam e respeitavam-na. Este episódio trouxe novamente a tona as inquietações que jaziam reprimidas dentro da princesa, foi o início do seu colapso.

Após a traição de suas amigas de infância e sua nomeação como futura senhora do fogo, Azula ficou cada vez mais paranoica e solitária. Depois de, por mero capricho, banir da nação as pessoas a sua volta, finalmente quando viu-se isolada, a princesa já não era mais a mesma. Em um acesso de raiva ela corta de modo irregular seu próprio cabelo que é seguido pela cena mais triste de todo desenho. No espelho, ela confronta-se com uma alucinação de sua mãe, que em tom consolador, a lembra que sempre teve um lindo cabelo, revela ainda que sempre a amou do mesmo modo que a seu irmão, e depois de quebrar o espelho, a princesa derrama lágrimas sozinha.

Quando os irmão reais se enfrentam no último Agni Kai o estado mental de Azula se manifesta no modo como ela luta. Sua postura antes impecável agora se mostra frágil e tortuosa, seus ataques são furiosos e imprecisos, ela luta de modo descuidado e desdenhoso, sua motivação é apenas dar vazão a todo sentimento de fúria e destruição que carrega em si. A consequência da sua imprudência e crueldade é a sua derrota pelas mãos de seu irmão e Katara. Azula, agora contida, tem um surto no qual se debate enquanto lança labaredas pela boca e em seguida — Quase como se lhe viesse em um lampejo a consciência de sua situação e tudo o que houvera passado para culminar naquele momento — chora, um choro violento, um choro irreprimido, são lágrimas de quem acabou de perder não somente tudo o que tinha, mas tudo o que era.

Então quem exatamente é Azula? Qual é afinal a sua identidade? Ela também possui uma luta interna entre o bem e o mal — Como Zuko — mas sem o tio Iroh e nem mesmo sua mãe para tutela-la na insuportável tarefa que é equilibrar essa reação diariamente. Ao invés disso, sempre teve apenas a seu pai, e a única coisa que Azula foi autorizada a ser, era um prodígio. O que vejo é mais uma criança vítima de uma guerra, mas seu ponto singular é que ao mesmo tempo que é vítima é, também, agente no próprio destino. É o motivo pelo qual sua última cena é de partir o coração. Esta é a tragédia. Foi tomada de Azula qualquer oportunidade de ser Azula. Ao contrário do seu irmão, nunca lhe foi permitido ter uma identidade, ao invés disso foi lhe entregue um papel e uma ordem para interpreta-lo de modo impecável e talvez em troca disso, recebesse algum reconhecimento. O fato de seu ultimo momento no desenho ser enlouquecida e desabando em prantos é, para mim, o final perfeito para seu trágico enredo.

A princesa da nação do fogo não passou de uma refém das circunstâncias. Quando eu olho para Azula não vejo um monstro impiedoso, mas uma garota confusa e mal orientada, uma garota de quatorze anos que precisava de atenção, perdão, amor e um sentido. Uma garota que merecia ser mais que apenas o prodígio nascido com sorte.

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𝒉𝒂𝒍 𝒌𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒛𝒐𝒗

um nephilim, por vosso pai condenado, a vagar com seus dias contados tomado pela constante urgência de dizer algo que é, por natureza, incomunicável.