Bandersnatch, Metalinguagem e o Cenário Cético

Se tomar a pílula vermelha ficará no País das Maravilhas… E eu te mostrarei até onde vai a toca do coelho.

A Netflix lançou nesta sexta (28) o filme Black Mirror: Bandersnatch da aclamada e homônima série britânica, só que dessa vez trouxe um novo significado ao nosso “Caralho isso é muito Black Mirror” pois inova mesclando o característico mindfuck da série com a possibilidade interativa de escolhas que possuem graves (ou não tão graves?) consequências no enredo — Não busco aqui atribuir ou explanar o significado e intenção do roteirista Charlie Brooker, mas discorrer sobre os pontos interessantes que a obra traz e a complexidade que ela adiciona a, não só a série em si, mas também a todo o gênero que pertence, portanto fica claro que o resto do texto possui spoilers sobre os diversos finais do filme.

Meu primeiro contato com o jogos interativos se deu com Life Is Strange, um jogo em terceira pessoa no qual você encarna a estudante aspirante a fotógrafa Max Caulfield e precisa fazer escolhas que variam de peso e alteram o enredo principal do jogo, elas vão desde regar sua planta a salvar uma amiga do suicídio. Life is Strange aborda a dificuldade de se fazer escolhas e lidar com suas consequências numa perspectiva muito sensível e artística, além de possuir um trilha sonora incrível , e por isso é sem dúvida um dos meus jogos favoritos. Depois dele surgiram mais jogos com essa mesma temática mas variando cada vez mais nas narrativas como o Heavy Rain para Ps4 (2016) e o mais recente Detroit: Become Human (2018) — Que para mim representa também um marco para seu gênero com seu enredo surpreendente e um plot não menos que genial.

Black Mirror Bandersnatch não é tão bom quantos os jogos supracitados quando se trata de fazer escolhas com consequências que irão dirigir o enredo principal, sinceramente enquanto via/jogava cheguei a ficar entediado pois a interatividade não é novidade para mim, e o filme oferece poucas escolhas significativas, e então o Brooker me surpreendeu.

A história de Bandersnatch se passa na década de 80 e começa com o jovem programador Stefan querendo fazer um jogo intitulado Bandersnatch, baseado num livro interativo homônimo, e para isso ele passa a trabalhar na empresa Tuckersoft no qual o também programador e ídolo de Stefan, Colin, também trabalha — Logo no início já fica escancarado que se trata de uma obra metalinguística e agora fico envergonhado de tê-la subestimado, pois realmente não achei que eles usariam esse recurso, que tem sido amplamente utilizado no cinema, de forma tão surpreendente. Bandersnatch é cheio de escolhas obrigatórias que você precisa fazer ou recebe um game over bem na sua cara, essas escolhas teoricamente servem para manter o enredo principal e não desconstruir totalmente a personalidade do personagem. Em uma dessas escolhas Stefan vai a casa de Colin para que ele o conte toda a verdade — Bem ao estilo Neo e Morfeu e foi exatamente nesse momento que entendi o que estava vendo.

A definição de metalinguagem é conceitualmente: a linguagem sendo usada pra transmitir uma ideia, sensação, conceito, sentimento, significado, pensamento ou sentido a respeito de si mesma, logo, concluiu Roman Jakobson que a metáfora associada a metalinguagem é um modo eficiente de se falar sobre o que quer se falar e ainda aproximar o leitor disto. Esse artifício cai como uma luva a premissa da série Black Mirror que como um todo sempre usa da tecnologia para falar sobre nossos problemas morais, éticos, interpessoais, políticos, econômicos e até da natureza humana.

A função metalinguística não tem como objetivo significar por si, e sim dizer o que o outro significa. JAKOBSON. R (1960)

Bandersnatch não é apenas um filme que usa de metalinguagem, ele exponencia isso de um modo tão interessante e inovador que eu não via desde o verso do Sant em Poetas no Topo. É uma obra ontológica, ou seja, foi roteirizada com consciência de si, e isso perpassa pelas claras referências espalhadas por todo o filme e pela quebra da quarta parede, mas vai além quando Stefan não só se dá conta de que suas escolhas estão sendo controladas por alguém, tal qual ele controla o personagem de seu jogo, mas também que isso não pode ser evitado. Ele então se vê num colapso mental e a beira da despersonalização enquanto você inevitavelmente também cogita que pode estar sendo induzido por algo a fazer a escolha que por sua vez irá induzir o Stefan, o livre arbítrio está em cheque. A metalinguagem utilizada nesse filme foi a hierárquica, onde se cria cenários ou níveis em que cada um fala sobre o anterior englobando todos os níveis antes de si, e que só pode terminar com você no sofá por cinco horas para ver cada um dos finais possíveis e, na minha opinião, dado o nível de consciência do filme de si mesmo nada poderia ser mais Black Mirror que isso.

Agora em êxtase eu contemplo um cenário cético de uma qualidade digna de Matrix, e quando comparo Bandersnatch com Matrix falo com tranquilidade pois o que liga esses dois filmes esta longe de ser apenas te fazer questionar a realidade numa pergunta vaga e sem sentido, os dois foram impecáveis em criar cenários céticos plausíveis que deixariam até Jean Baudrillard, autor de “Simulacros e Simulações”, sem conseguir dormir maquinando em sua cama.

O cenário cético é um dos principais argumentos da corrente ceticista que vai de encontro a teoria do conhecimento, é um problema de epistemologia, que se trata da área da filosofia que estuda a natureza e propriedades do conhecimento. Partindo do pressuposto cético de que não temos como ter certeza absoluta do que sabemos e também não temos como nos certificar a respeito do mundo externo, porque uma simulação nos pareceria e nos faria sentir exatamente como o mundo externo faria, logo não sabemos se estamos ou não em uma simulação, portanto não sabemos nada sobre o mundo externo e está aberta a possibilidade da Matrix. Aplicando esse argumento ao Bandersnatch: Não temos como ter certeza de que nossas escolhas são realmente feitas por nós, logo não sabemos quem poderá estar as fazendo, portanto, como saber se nossas vidas, incluindo nossas desgraças diárias, foras e ônibus perdidos, não estão sendo televisionadas como entretenimento para uma sociedade futurista doentia?

O debate contemporâneo sobre o ceticismo ainda esta em aberto, boa parte dos filósofos acharam que uma conclusão para isso é impossível e desde Descartes não se teve outra grande descoberta na área, muitos podem até achar a natureza do questionamento tola ou fruto de uma experiência com psicodélicos de boa qualidade, mas é exatamente pela natureza óbvia do problema que eu considero perfeitamente plausível dentro das milhares de possibilidades que é a vida, além do que, entender a fundo a natureza desse tipo de questionamento nos ajuda a também entender a natureza do que chamamos de conhecimento.

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𝒉𝒂𝒍 𝒌𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒛𝒐𝒗

um nephilim, por vosso pai condenado, a vagar com seus dias contados tomado pela constante urgência de dizer algo que é, por natureza, incomunicável.