[Enem 2018] Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet

Minha irmã chega em casa após o domingo de Enem com o caderno de questões do primeiro dia aos rabiscos como é comum no pós prova — Eu já sabia o tema da redação logo que saiu pois é assim que o mundo funciona hoje em dia — não falamos nada a respeito, ela estava visivelmente cansada e era justo ela ter o merecido descanso. Na segunda já à noite, falamos sobre toda a primeira prova de linguagem e humanas, da redação como um todo, tema, pontos fortes para desenvolvimento e possíveis cenários conclusivos, desatamos então a falar a respeito do que para mim pode ter sido o tema mais atual e que exigiu dos candidatos o maior nível de abstração desde que faço essa prova. Abstração, conceito definido aqui não de sua maneira literal que é analisar por uma operação intelectual um objeto exclusivo, isolando-o de sua realidade ou meio, mas como uma condição resultante de uma formação pautada no senso crítico, não no comum, que propõe a reflexão da práxis de forma dinâmica com o sentido que a própria palavra práxis evoca.

Tenho 20 anos e estou longe de ser um especialista na prova do Enem, na verdade minha estória é relativamente curta — visto que fiz pela primeira vez no 2º ano do ensino médio, a segunda no fim do 3º quando entrei na universidade, e uma vez já na universidade, quando achei que ainda o devia fazer — no entanto após a renovação na abordagem do Enem, lá atrás em 2009 , a prova inteira passou a cobrar do candidato habilidades e competências para analisar fenômenos que estão acontecendo ao seu redor de maneira crítica e reflexiva.

Talvez essa introdução passe a errônea ideia de que me difiro do aluno que faz o Enem, quando em verdade faço parte da exata população que presta o exame e possuo apenas algumas outras referências que aprendi na academia e minha linguagem, que ainda tropeça na norma culta, foi desenvolvida no compromisso de leituras.

Em 2013 o tema da redação abordou a implantação da lei seca no país, mas ressalto 2014 e 2015 quando tive uma nota mais alta que a média como resultado de um amadurecimento e compreensão da prova em si, os temas foram: publicidade infantil em questão no Brasil e a persistência do machismo e violência contra a mulher na sociedade brasileira, respectivamente. Um padrão já descoberto pelos atuais professores gurus que conseguem por vezes adivinhar o tema, é que os assuntos abordados sempre são relevantes e pertencem ao recorte histórico tido como presente no país, e que requerem uma análise critica reflexiva que deve ser demonstrada em um texto dissertativo argumentativo que também deve abarcar habilidades e competências que serão avaliadas e pontuadas.

Logo nota-se que fazer uma boa redação no Enem não é uma tarefa fácil — deve-se pontuar aqui principalmente a diferença entre os candidatos de escola pública e alunos de escola particular ou cursinhos — e entendo que no pós prova não é agradável alguém lhe dizer, principalmente com desdém, o que seria um excelente ponto ou dado óbvio a ser adicionado para um texto mais rico. O que proponho é um exercício de reflexão, uma análise crítica ao modo que se “cobra” na prova mas não a isentando disso, fazendo assim no estudo da práxis de se prestar o Enem uma crítica á crítica.

Fiz essa redação dois dias após o fim da primeira prova, não tive limite de tempo e a fiz no conforto de minha casa, não me impus limites de linhas ou mesmo complexidade de idéias todavia usei apenas ideias e dados que possuía até a descoberta do tema.

Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet

Devido a necessidade do controle de dados é retratada a realidade não só nacional e sim mundial quando se leva em conta que o século XXI encara agora um dilema ético, e judicial também, da chamada pós modernidade ou como define Bauman, filósofo e sociólogo polonês, a modernidade líquida. A modernidade líquida advém das mudanças nas relações humanas e em como a globalização e a tecnologia desenvolvem papeis fundamentais nessas mudanças.

Os millenials e as gerações posteriores (Z e pós tudo) encaram uma mudança brusca na maneira de se comunicar, 85% dos jovens no Brasil possuem ou já possuíram acesso a internet segundo o IBGE, e 9 a cada 10 usuários de internet a usaram como instrumento comunicativo para troca de mensagens de voz, imagens, texto ou e-mails. A rede social de interação do indivíduo antes limitada até por fatores geográficos hoje se encontra sem fronteiras, pois é transportada para um universo virtual que cada vez mais é idealizado como separado, a parte, do real quando na verdade suas consequências são diretas e difíceis de mensurar.

Devido a essa grande alteração, principalmente a partir dos anos 90, vemos exemplos recentes, cada um como um recorte histórico e problemática própria, mas com o ponto em comum: O de como o acesso aos dados privados podem cercear a liberdade de escolha e criar uma “ilusão de liberdade” a qual se atribui tanta realidade quanto atribuíam os homens presos na caverna de Platão as sombras que se formavam na parede. Tanto no caso de espionagem mundial do EUA, delatado a jornalistas e órgãos mundiais por Edward Snowden, analista da CIA, quanto na possível venda de dados dos usuários do facebook feita pelo seu criador, Zuckerberg, para a publicidade e anúncios personalizados por algorítimos que definem a partir dos dados dos usuários quais prováveis propagandas o representarão melhor e logo terão mais chance de convencê-lo, como também nas centenas de fake news espalhadas por correntes de whatsapp nessa eleição presidencial.

O combate a liquidez citada no início se torna então a melhor forma de conter o avanço da dissolução da ética e do controle da liberdade através do uso de dados privilegiados e muitas vezes privados, estratégias para viver em uma sociedade líquida foram pensadas, de maneira rústica e pioneira, por Bauman em sua obra modernidade líquida. Tais medidas podem se traduzir como uma política pautada na ética e educação que teria como consequência direta a plena compreensão e aceitação dos direitos humanos, e a criação de uma legislação específica para internet com respaldo internacional que perpassaria por discursos afirmativos sobre agora sermos uma grande comunidade humana.

O ultimo parágrafo dessa redação destinado a conclusão de certa forma quase não foi escrito por mim, é apenas uma estrutura de escrita na qual se observou relativo sucesso entre os corretores, e é realmente uma boa forma de se concluir e atesto já tê-la usado em conclusões de artigos acadêmicos aprovados e publicados. Mas o que quero dizer é que quem pensou a proposta de intervenção — um dos importantes pontos necessários a conclusão da redação — foi Zigmount Bauman, como dito no próprio texto um sociólogo polonês que possui tanta aprovação do público quanto da acadêmia, sua obra se propõe a analisar o homem pós moderno quanto a suas relações, medos, vida e paradoxos. Cunhou o tão usado termo modernidade líquida que atualmente é aceito como bom substituto ao termo pós modernidade, uma vez que o presente é sem forma e parece escorrer pelos dedos.

Aos 91 anos Bauman é um homem brilhante de memória e sanidade invejáveis que dedicou sua vida e obra ao estudo das consequências da globalização e da face desumana do capitalismo, e mesmo após publicar pelo menos 50 livros durante toda a sua vida — sendo o mais recente ano passado — ele não dispõem de certezas… Ou de uma “proposta de intervenção” direta, que não fuja ao tema, abstrata, e que não ultrapasse 8 a 10 linhas a depender de quantas você já usou no desenvolvimento.

Penso que nem o professor doutor Leandro Karnal conseguiria sintetizar o pensamento baumaniano de forma satisfatória, a banca e a ele mesmo, em apenas 30 linhas. Então a crítica não é ao tema, a estrutura da prova ou mesmo o espaço designado a redação, mas ao tipo de educação que estamos construindo e agregando valor que parece muitas vezes valorizar a crítica e o pensamento argumentativo desde que, claro, não critique ou argumente contra o sistema.

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𝒉𝒂𝒍 𝒌𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒛𝒐𝒗

um nephilim, por vosso pai condenado, a vagar com seus dias contados tomado pela constante urgência de dizer algo que é, por natureza, incomunicável.