Jesus na goiabeira e a navalha de Ockham, ou como o Brasil falhou com Damares

No mês de dezembro de 2018 Damares Alves deu uma chacoalhada nos ânimos da internet por ter sido indicada como ministra da mulher e dos direitos humanos, até agora a ministra já propôs algumas ideias no mínimo curiosas sobre regulamentação dos direitos humanos no país e sobre a apelidada “bolsa estupro” projeto que pretende garantir para as mulheres que decidirem seguir adiante com a gestação o valor de 85$ mensais para ajudar com os gastos.

Damares é uma advogada e pastora evangélica de uma sub-divisão da igreja pentecostal — Perdoe-me pelo tratamento genérico mas realmente entendo muito pouco sobre igrejas e suas divisões em movimentos religiosos e como isso não faz diferença em relação a intenção do texto, mantenho assim — e agora na posse de Jair Bolsonaro, ministra. O que fez a internet parar para pôr os olhos sobre Damares foi o vídeo gravado em uma missa/culto/sermão (desculpa) no qual ela com todo o esteriótipo evangélico de gritos e falas pausadas conta sobre seu inusitado encontro com Jesus em um pé de goiaba.

Damares conta que sofreu abuso sexual dos 6 aos 10 anos de idade, e se sentindo culpada pelos abusos além de achar que ia para o inferno, ia chorar na goiabeira que ficava no que imagino ser o quintal de sua casa. Um dia já não aguentando o sofrimento psíquico, a menina subiu na goiabeira com um veneno para dar fim a própria vida e foi nesse momento que ela viu Jesus no chão pronto para subir no pé de goiaba para consola-la. A menina Damares, aos gritos, precave Jesus de que ele não pode subir no pé de goiaba pois há o risco de cair e se espatifar no chão mas em sua magnitude nosso senhor ignorou o aviso, subiu no pé de goiaba, e consolou a menina. A internet não perdoaria esse relato, foram feitas chacotas, riu-se bastante e a pastora foi escarnecida.

Em nenhum momento eu ri do testemunho da pastora — E não digo isso como uma conquista ética ou em tom moralmente superior, mas sempre preferi o humor do Choque de Cultura a figuras religiosas como Damares e cabo Daciolo — Mas nem me passou pela cabeça tomar seu testemunho milagroso como verdade, pois um princípio lógico relativamente simples me impede: A navalha de Ockham (ou Occam). A navalha de Ockham não é um argumento em si, mas um postulado, ou se preferir, princípio lógico por qual se pode desenvolver argumentos a partir desse princípio epistemológico já conhecido inclusive por Aristóteles: O princípio da parcimônia.

Parcimônia significa literalmente “menos é melhor” ou ainda, não há sentido em fazer com mais o que pode ser feito com menos. Além da parcimônia o princípio da pluralidade compõe a navalha, entenda este como a lâmina da navalha de Ockham, uma vez que este postulado nos diz que a pluralidade não deve ser postulada sem nenhuma necessidade. Aplicando a navalha ao caso Damares uma explicação que contempla todos os fatos é que provavelmente a serie de abusos sofridos e a condição de sofrimento psíquico prolongado geraram esse bloqueio e um estado de crise na menina. Já em crise, um dos artifícios usados para autodefesa são os delírios, e como Damares frequentava a igreja desde sempre, os delírios místico religiosos foram a forma dela de sair deste estado.

Essa hipótese, além de contemplar o relato da pastora, não pede que você acredite em nenhum fato que já não seja descrito dentro da área da psicologia e psicanálise, enquanto o relato da própria Damares já requer que pelo menos você acredite em Jesus e que o mesmo consiga subir em pés de goiaba.

Agora longe das goiabas e já explicado o porquê eu não acredito que o relato da pastora seja verdadeiro — e que também não acredito que foi feito com simples intenção de manipular os fiéis — penso que o caso Damares escancara mais um vez a incapacidade do Brasil de lidar com seus problemas de um ponto de vista da saúde. Geralmente questões sociais complexas como aborto, estupro, abuso infantil, sexualidade e sofrimento/adoecer psíquico são simplesmente ignorados ou transformados em tabus, quando não são movidos da área da saúde coletiva para o simples julgamento moral e achismo do senso comum. Preferimos acreditar em Jesus subindo em um pé de goiaba a admitir que em nosso país crianças são estupradas e que a consequência direta disso são graves, e as vezes incorrigíveis, traumas.

Nossa incapacidade de discutir e pensar essas questões como questões de saúde — Do ponto de vista de sociedade e indivíduos, não de academia, onde esses problemas são discutidos constantemente, e eu inclusive tive a infelicidade de me ver diante de um caso parecido no projeto de intervenção que executei com colegas e professores em uma escola pública de Vitória da Conquista de Agosto à Dezembro de 2018 — acaba por estigmatizar mais ainda esses temas tornando-os restritos a academia e a “elite pensante”, garantindo assim que outras Damares continuem na invisibilidade.

Trançando um paralelo talvez não tão coeso, o jornalista, escritor e membro da academia brasileira de letras Merval Pereira também ficou famoso na internet por uma entrevista na globo, onde falando sobre as eleições, ele enfatiza e repete que o ator pornô (Alexandre Frota) está entre as caricatas figuras eleitas deputado. A surpresa da conversa foi que, ao explanar— De maneira genial e hilária diga-se de passagem, pois é como se essas contradições do conservadorismo estivessem protegidas apenas pelo mero pudor que temos de aponta-las — a contradição de que o “país da sensualidade” que cresceu vendo a piscina do gugu, não só está dentro da onda conservadora que cresce no mundo todo, mas também elegeu um ator pornô como deputado federal, ele foi rigorosamente ignorado pelos colegas jornalistas que rapidamente trocam o foco da conversa desconcertados. Ora, Merval parece saber que há ai um componente freudiano que nos leva a essa incapacidade de discutir esse tipo de assunto e, ao invés de racionalizar esses debates, somos tão traumatizados que fechamos os olhos e preferimos acreditar em fake news de mamadeira em formato de pênis.

Seja por um trauma criado pela televisão da década de 90 ou pela acensão do conservadorismo, o fato é que enquanto esses assuntos continuarem a serem tratados dessa maneira o setor de saúde do Brasil só tem a perder e mais pessoas ficarão desassistidas e carentes de ajuda legal. Damares era um caso para saúde mental e país falhou em lhe oferecer a assistência necessária e amparo legal. O Brasil falhou com Damares.

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𝒉𝒂𝒍 𝒌𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒛𝒐𝒗

um nephilim, por vosso pai condenado, a vagar com seus dias contados tomado pela constante urgência de dizer algo que é, por natureza, incomunicável.