Liberdade, Pipas e como Agosto Anuncia sua Chegada

Meninos Soltando Pipas, Candido Portinari, 1947.

Particularmente eu sempre gostei do mĂȘs de agosto. Apesar de que a cada ano que passa ele parece ser acrescido de mais e mais dias atĂ© que se sinta em dois meses dentro de um, ainda assim, continua sendo um mĂȘs feliz para mim. Agosto Ă© o mĂȘs do meu aniversĂĄrio e tambĂ©m do dia dos pais. As vezes, a depender do ano, os dois eventos caem no mesmo dia, o que Ă© muito bom, pois compartilho presentes com meu pai. Eu sempre lhe dava a loção pĂłs barba que vinha em alguns kits de cosmĂ©tico masculino que ganhava; nunca tive barba. Vim de uma pequena cidade no interior da Bahia onde a chegada de agosto era anunciada por ventos fortes que sempre traziam terra e sujavam os azulejos brancos da minha casa, mas pra mim agosto significava ainda outra coisa, temporada de pipa.

Durante minha infĂąncia clichĂȘ em minha cidade brinquei de diversos clĂĄssicos: Jogava bola de gude, brincava de taco (uma versĂŁo infantil do CrĂ­quete), subia em ĂĄrvores, fui fortemente influenciado por modismo de animes como Naruto, Yugioh!, Beyblade, mas sem duvida a temporada que unia todas as tribos era a temporada de pipa.

Na primeira evidencia de ventos em agosto Ă­amos caatinga adentro atrĂĄs de taboca, um tĂ­pico bambu nativo do Brasil e excelente para a estrutura das pipas, isso por que, pra ser aceito e respeitado na sociedade dos meninos soltadores de pipa vocĂȘ precisava fazer sua prĂłpria pipa aprendendo com seus amigos ou adultos que jĂĄ eram peritos, e portanto, respeitados por todos os meninos. O prĂłximo destino era a papelaria de InĂȘs onde se tinha uma infinidade de papel-seda de todas estampas e cores. NĂŁo era de bom tom escolher a mesma estampa ou cor de um amigo ou conhecido seu, pelo simples fato de que eramos crianças, entĂŁo por mais que isso nĂŁo resultasse em briga, tudo o que querĂ­amos era nos sentir especiais e Ășnicos no cĂ©u. Com todos materiais em mĂŁos tudo que vocĂȘ precisava era de alguĂ©m que jĂĄ sabia fazer uma pipa, por sorte meu melhor amigo Binho era muito bom nisso, e mesmo nĂłs dois tendo quase a mesma idade foi com ele que aprendi.

A confecção da rabiola era feita a partir de sacolas plĂĄsticas. Era o que levava mais tempo, pois todos queriam ter a maior ou a mais enfeitada, pois alĂ©m da estĂ©tica particular, a rabiola proporciona uma aerodinĂąmica necessĂĄria. Pode nĂŁo ser de conhecimento pĂșblico, mas uma pipa nĂŁo levanta voo sem rabiola de jeito nenhum.

Ao final de todas as missÔes cada um estava com sua pipa pronta e o relógio jå indicava as 5 da tarde, horårio que os meninos se dirigiam a um terreno vazio, razoavelmente grande de terra vermelha e pequenas årvores mais a frente, para ali poderem subir as pipas.

Em minhas lembranças era um momento mĂĄgico — Pode soar apenas como mais um saudosismo nostĂĄlgico porque o passado parece ficar mais e mais lindo enquanto o futuro mais e mais incerto, mas eu nao me importo, me faço essa concessĂŁo — algo como 20 pipas no cĂ©u e 20 meninos no chĂŁo imaginando e aproveitando, mesmo que limitados, um pedaço da liberdade simbĂłlica de voar, o sol morno do final da tarde, metros e metros de linha enrolados em latas e diversas pipas cada uma a sua forma no cĂ©u limpo, as vezes azul, as vezes em tons alaranjados. As meninas, que sempre brincavam entre elas, paravam em grupo pra olhar as pipas e conversar por lĂĄ. Alguns adultos iam assistir tambĂ©m e meu pai, perto do quintal de minha tia de onde tinha uma boa visĂŁo tanto das pipas quanto de mim, fumando um cigarro derby.

Vez ou outra dois meninos travavam uma luta de pipas onde tentavam cortar a linha um do outro, os que tinham cerol na linha claramente possuíam uma desonesta vantagem, mas eu achava perigoso demais e frequentemente ele provocava cortes na mão, a briga terminava quando uma linha se arrebentava pelo atrito ou quando as pipas e linhas se entrelaçavam e caiam juntas. Nessa hora era uma correria através dos terrenos seguintes para tentar recuperar as pipas, uma vez que a segunda regra dos meninos soltadores de pipa é: uma pipa no céu não tem dono, ela é livre, então quem a recuperar tem a posse até a por para voar novamente. Jå perdi algumas pipas e também jå consegui recuperar algumas que se tornaram minhas. O interessante era que sempre que perdia uma a próxima acabava ficando melhor que a anterior, que por sua vez era melhor que a anterior a essa.

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𝒉𝒂𝒍 𝒌𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒛𝒐𝒗

um nephilim, por vosso pai condenado, a vagar com seus dias contados tomado pela constante urgĂȘncia de dizer algo que Ă©, por natureza, incomunicĂĄvel.